Peço um pouco de
paciencia com as minhas palavras, pois quero fazer uma ultima homenagem a minha
Vó, que não é apenas minha Vó, mas minha Madrinha, não apenas minha Madrinha,
mas minha Mãe pelos últimos anos.
O prêmio nobel, o poeta chileno, Pablo Neruda,
entre seus versos, escreveu “Temos longos
braços para enterrar os nossos”. A 1a vez, pensei em uma sentença
terrivelmente macabra coberta de obrigaçao. Enterrar os nossos, dobrando-nos as
escolhas da morte.
Ainda não são seis anos, e meus longos braços
ja enterraram meu avô, minha mãe, e agora minha avó. Ao me aproximar dos seus caixões,
observo as marcas fatais, os traços fisiologicos, a rigidez caracteristica, a
palidez, o inchaço. Serão eles mesmo? Procuro sempre suas mãos, não sei porque.
Meu Vô tinha dedos longos, tortos de aventuras
e ensinamentos. Choro a reconhecê-los. Minha mãe tinha as mãos mais lindas que
ja vi. Choro a reconhecê-las. Minha Vó trazia a arte e as falanges distorcidas
da artrite nas suas. Choro reconhecendo-as.
Choro por saber que seus olhos permanecerão
fechados mesmo que eu clame por minha Vó Maria.
Alguém pode pensar que ela foi apenas uma boa
esposa, uma mãe dedicada, uma cidadã exemplar, uma católica fervorosa. Ela não era
uma intelectual como meu avô, nem a ultima palavra numa sociedade patriarcal.
Contudo ela era uma artista, fosse criando
flores de seda para enfeitar noivas, fosse juntando temperos na cozinha, fosse
dormindo na máquina de costura para vestir os seus e outros, fosse pintando
telas, fosse aprendendo linguas, fosse com sua mala pronta para viajar, fosse
trazendo a vida não apenas 7 filhos, mas seu jardim e sua horta, fosse sendo
teimosa, brava e ditadorial, pondo a risca a sua origem italiana sulista, e
sendo sim.. muitas vezes.. A última palavra.
Ela viveu. Ela viveu plenamente seus 91 anos. E
não choro mais lágrimas de tristeza. Jovem ela adotou uma pequena menina, mãe
solteira por opção e aprovação familiar, numa época nada aconselhável tal
modelo. E não foi apenas a Irma que lhe chamou de mãe, de tantos outros que ela
chamou como seu.
Ela namorou meu avô, com o vovô Egidio pondo a
pequena menina entre eles na sala de estar. E esta historia deles, começou com
uma pequena criança, uma confusão do padrinho do rapaz, e este amor durou até
que a morte os separou 63 anos depois.
Poucas vezes, eu os vi se beijando, e
perguntada ela dizia a mim “no nosso tempo isso não era preciso”. Sim, a demonstração
de amor teve uma época singela, e mesmo em discussões e meu avô gritando a ela
que os netos iriam quebrar seus pescoços trepados em arvores, observava seus
olhares de paixão, de cuidado, de proteção, de orgulho, de amor e de respeito
mútuo.
Eu e a minha Vó aprendemos a nos ouvir e nos
compreender, e o que mais gostava era ouvir suas histórias e conselhos.
Sangue não é água.
Família é família.
Necessidade faz as virtudes.
Piano, pianissimo.
Há verdades que não devem ser
ditas.
Deus sabe o que faz.
Se atrae mais moscas com mel que
com vinagre...
Ou quando escutava algo que não devia e dizia “não
ouvi nada”... Ou dizia a tudo que riamos “que tanta bobajada que vocês falam”...
Ou dormia vendo a novela “...estou escutando tudo, apenas descançando meus
olhos”.. Ou pega comendo algo que não devia, e negava com a boca toda suja de
chocolate. Meu avô lhe dava “Sonho´s de
Valsa” escondido. “Nao posso negar nada a Maria”.
Ao ver a dor dela ao enterrá-lo, ao por a
aliança dele sobre a dela, ao querer se cobrir de negro para sempre, ao se
pudesse se atirar numa pira como uma esposa hindu; o que graças a Deus, nem o
luto eterno foi completado nem a fogueira, ela me disse que não haveria outro
amor… “Não seria o Paulo”.
Nos seus últimos dias, ela o via, assim como a
minha mãe e o seu irmão César. Pedia para lhes servir água, e dizia que era
abraçada por seu marido. Acredito que ele veio buscá-la, e saíram de mãos
dadas, dançando Nat King Cole como
gostavam. Um amor reunido pela morte.
Hoje, vejo as palavras de Neruda como algo da
vida, algo para se homenagear as vidas dos que nos deixam. Não temamos a morte.
Saiamos daqui com a certeza que o corpo dela se perderá, mas não sua vida, não
seu exemplo, não sua historia. Como muitas vezes, ela disse para mim no
telefone; “sinta-se abraçada por mim”...Eu a modifico um pouco:
Vó Maria, sinta meus longos
braços que te abraçam mais uma vez, mi muñequita linda… Eu te amo.